Somos ilhas que o oceano abraça e, mesmo em nossos guetos dessa língua que está posta, somos versos que atravessam o Atlântico! Esta é a inquietação fronteiriça; a nossa zona de conforto, no meio de tantas línguas dentro de um mesmo idioma.
Por ser uma estrutura social viva, ativa, em constante fluxo de adaptação e mutação através dos seus usos, a língua é também um retrato identitário da forma que uma região, e que uma comunidade, se relaciona com o mundo que a envolve. Trata-se de um movimento (mais do que um manifesto aqui proposto nestas linhas) de reflexão, celebração e estudo da Língua Portuguesa por intermédio da arte, a partir dos seus usos em diferentes territorialidades, do protagonismo narrativo das populações de territórios periféricos (bairros) dos países integrantes a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) em primeiro momento.
Descolonizar o idioma, conectar pessoas; MEU BAIRRO, MINHA LÍNGUA é a redescoberta de nossas raízes, heranças culturais e relações históricas, por intermédio e aproximação de artistas cuja língua portuguesa é o idioma oficial, mas que apresentam fortes características de sua região em suas canções, que colaboram com o futuro de nossa língua muito mais próxima de nossos saberes e ancestralidades que compõem a cultura de uma nação em si.
Os bairros da língua portuguesa são o foco de percepção das mudanças no idioma e como cada artista local compreende e percebe a questão linguística e ao mesmo tempo a memória afetiva de seu bairro de origem em suas criações. Sendo assim, este movimento é constituído por aproximar os distantes que pensam novas formas de usar a língua como conectora de bons sentimentos; mesmo que esses distantes estejam em outra ponta de oceano; do outro lado do Atlântico. Todavia, este movimento tem em suas matrizes a contracolonização da língua portuguesa, a partir da reflexão e estudo da mesma na produção artística de seus falantes, como panorama dos seus usos em diferentes territorialidades, do protagonismo narrativo das populações de territórios periféricos (bairros) e como suas produções corroboram com as mudanças de nosso idioma enquanto poderosa ferramenta de intercâmbio e entendimento daquilo que somos (língua).
O movimento teve início em 01 de agosto de 2021, com o lançamento da canção homônima como parte da reinauguração do Museu da Língua Portuguesa (São Paulo) e assim destinada ao seu acervo. A música foi interpretada por grandes vozes contemporâneas da língua portuguesa: uma canção, mesmo tom para diversos sotaques, anseios e necessidades.
Mas uma canção, registrada por diversos sotaques a quilômetros de distância e com um oceano ao meio dessas vozes que, sequer se encontraram fisicamente (sobretudo no contexto de pandemia da COVID-19), cuja temática estava embasada num conceito que dá força a este movimento, o de Nova Lusofonia, com versos que descreviam sobre memória afetiva das palavras, poderia alcançar algum reconhecimento em tempos de produções que duram, às vezes, uma semana de atenção aos ouvidos consumidores das plataformas streaming?
Pasmem, alcançamos a marca de mais de 5 milhões de views/streamings em plataformas digitais. Em 2022 a canção se tornou uma série para tv com 8 episódios, disponível para streaming gratuito no Globoplay e presente nas grades dos canais Futura (Brasil) e RTP África (para 6 países de língua portuguesa em África mais Portugal), assistida por mais de 6 milhões de espectadores.
2023 foi o ano de estreia do concerto, materializando em palco aquilo que, por presunção ou utopia chamamos de movimento; o show aconteceu em comemoração ao Dia Mundial da Língua Portuguesa (efeméride instituída pela Unesco), em Brasília, São Paulo e Belém do Pará, com a participação especial de artistas do Brasil, Portugal, Cabo Verde e Angola, chegando a um público de 1.200 pessoas em salas de teatro (como Caixa Cultural Brasília, Sesc Vila Mariana e Teatro Firjan Sesi Almirante Barroso) e contratando mais de 90 profissionais da cultura (em uma equipe diversa com mulheres, pessoas negras, LGBTQIAPN+ e povos tradicionais). Ainda em 2023 o projeto apresentou seu desdobramento educativo (pocket show e oficina) para crianças e adolescentes matriculadas nos Ensinos Fundamental II e Médio, no interior de São Paulo e também em Belém do Pará; em escolas e centros culturais daquela região.
Chamar pra responsa outros territórios periféricos, para dizer que a língua é nossa, das ruas, por isso ela está viva! E pensar em termos estéticos que cada construção periférica-poética, seja em Luanda, Maputo, Cova da Moura, Ceilândia, Guamá, Capão Redondo ou Pavuna; tudo se mistura, se transforma em boombap, trap, afrobeat, jazz rap e spoken word, em constante diálogo com estilos como fado, samba-canção, marrabenta, morna, funaná, bossa nova, mpb, canções de povos originários e toques de candomblé, onde recontar a história daquilo que se perdeu na travessia do Atlântico e defendendo que não há lusofonia sem o Brasil. No tocante àquilo que nos torna uma nação protagonista deste idioma e de relevância cultural
É sobre aquilo que chegou ao Brasil e nos transformou; aquilo que também se perdeu na confusão do Atlântico e precisa ser retomado/remontado a partir de nossas vozes, em releituras e citações relevantes desta travessia; em reflexão sobre potencialidades e futuro da língua portuguesa, tendo o Brasil como protagonista e influência no contexto lusófono.
É a Língua (patrimônio imaterial) que nos permite criar pontes criativas neste país continental em que vivemos. Ao mesmo tempo em que classificamos nosso idioma como rico e complexo podemos afirmar que o mesmo se reconstrói e se reinventa diariamente no falar de seu povo, sobretudo nos bairros, onde a oralidade é uma constante catalisadora de influências dos múltiplos “falares urbanos”. Somos cerca de 275 milhões de pessoas que falam português nos 5 continentes, conforme o último levantamento da Comunidade Dos Países da Língua Portuguesa (CPLP). Segundo o Instituto Camões, até 2050 teremos aproximadamente 380 milhões de falantes de nosso idioma. Seremos a 4ª língua mais falada no mundo; a 1ª mais falada no Hemisfério Sul e, muito desses números, deve-se à nossa nação enquanto falante deste idioma.
Pode soar ufanista e diatópico, mas o Brasil é o país que dá maior escala à influência/importância do idioma no mundo; um ativo valioso no plano político, cultural e econômico no contexto internacional. Entretanto, a dimensão global da língua ainda não é reconhecida em sua totalidade no Brasil. Buscamos estabelecer nosso país como responsável pela articulação cultural e a promoção ao debate acerca das novas vertentes artísticas lusófonas produzidas pelos diversos segmentos das artes urbanas, tendo a arte como fio condutor e agregador.
Os bairros são o foco de percepção das mudanças no idioma e como cada artista local compreende e percebe a questão linguística e ao mesmo tempo a memória afetiva de seu bairro de origem em suas criações. É do bairro que surgem os artistas glocais (globais e locais); que possuem orgulho e valorizam suas origens e ao mesmo tempo apontam sua música para o mundo, tendo o conceito de Nova Lusofonia como poderosa ferramenta de integração entre os povos com o recurso do idioma.
Glocal é o conceito que demarca combinação de um globo interconectado pela comunicação e pelos fluxos de mercadorias e pessoas, com a necessidade de se agir localmente. Poderíamos dizer que é a marca dos nossos tempos contemporâneos, e aqui abraçamos o lema: pensar globalmente e agir localmente.
Bairro é uma palavra que em muitos países de língua portuguesa faz referência aos territórios das periferias urbanas ou a áreas urbanas empobrecidas. E a escolha desse termo nesse movimento não é à toa. Buscamos como valores centrais das ações: afirmar e conectar as expressões culturais das periferias urbanas, tornando acessível ao indivíduo desde cedo assuntos que se referem à criação e formação de pensamento em torno da arte central, geograficamente periférica, da língua portuguesa.
Quiçá tal movimento poder-se-á estender aos nossos vizinhos aqui na América do Sul — que também passaram por processos de silenciamento através do genocídio voraz de seus povos, num apagamento total e, talvez, sem precedentes — que igualmente nos livros de história e ciência de nossas nações certamente não há a menção. Ao menos, não aprendi nada a respeito durante meu letramento e, hoje, minha filha de 07 anos também não. As histórias se repetem e a narrativa pode ser desconstruída e recontada a partir de nós, hoje com nossos 5 sentidos completamente postos a serviço das redes sociais e seus scrolls infinitos.
E por isso em “Meu Bairro, Minha Língua”, a língua vem depois. Primeiro o bairro, primeiro o local, primeiro o uso específico, a gíria, o termo afetivo, e depois o acordo ortográfico as regras de sintaxe e morfologia. Este movimento propõe novas formas de pensar a língua e seus grandes enriquecimentos culturais. É a consolidação de uma iniciativa de integração entre falantes de nosso idioma e o reconhecimento de nossas origens tendo a arte como elo nesta travessia — talvez a arte seja a única ciência humana que se é possível ser hackeada por um povo massacrado, hoje ainda, em seu cotidiano traçado/determinado à luz do hipercapitalismo.
É sobre aproximar os distantes que pensam novas formas de uso do idioma.. É a língua, que carrega também consigo todo um apagamento histórico servindo de ferramenta de comunicação para aproximarmos distantes e investigar aquilo que se perdeu na travessia do Atlântico e, sobretudo, nos constituiu como a nação que somos hoje. representando toda a ancestralidade da língua e a história da travessia deste idioma.
Trazer o Brasil nesta negociação sobre o futuro da língua (esta que está de passagem por Portugal, conforme o linguista Ivo Castro) é possibilitar criar um calendário de debate e de relevância cultural em nosso país como protagonista no futuro da língua portuguesa por intermédio dos artistas presentes em palco e, utopicamente, mas não impossível, por quê não todas as expressividades da arte? É apresentar este Brasil potente e, ao mesmo tempo, aberto ao diálogo com os demais territórios lusófonos.
O Brasil é um país de dimensões continentais, com uma grande diversidade cultural, étnica e linguística. Cada região tem suas próprias manifestações artísticas, que expressam sua identidade, sua história e sua visão de mundo. A música é uma das formas mais ricas e universais de arte, que pode aproximar, integrar e dialogar com diferentes públicos e contextos. Nosso movimento também busca valorizar as línguas indígenas e africanas que influenciaram a formação da língua portuguesa no Brasil, bem como as variantes regionais e os dialetos que enriquecem a nossa comunicação, de um povo igualmente caboclo e sertanejo em seu DNA.
Por conseguinte é abrir espaço e oportunidades para a reunião de artistas periféricos e regionais num mesmo lugar de fala (ou falas), debatendo mazelas, mas também buscando novas formas para o que está por vir. É compreender a força das periferias como o novo centro, como agregadora artística e geradora de debates sobre a cultura urbana em si no tocante à sua relevância como potência criativa, assim como entender seu hibridismo em nosso país por intermédio da arte, a partir dos seus usos em diferentes territorialidades, do protagonismo narrativo das populações de territórios periféricos.